Girassóis da penúltima semana de outubro ou da segunda onda do antiliberalismo na América Latina
“E o corpo fazia-se planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma”. Frase de Machado de Assis apresentada por Vladimir Safatle como epígrafe do seu texto Para além da necropolítica, publicado pela n-1 edições (https://www.n-1edicoes.org/textos/191 ). O autor convidando-nos à problematização dos impactos globais da pandemia na gestão social dos corpos, das vidas e do desaparecimento das pessoas, iniciando com uma revisão do ensaio Necropolítica, gestão social imputada aos países colonizados. Sem pretender aqui desenvolver uma análise apurada do referido texto, a realidade é que Safatle revisa necropolítica, abordagem desenvolvida pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, que representa um olhar desdobrado sobre o termo biopolítica cunhado inicialmente por Michel Foucault, mas que conserva uma maior aproximação teórica com o olhar sobre biopolítica produzido por Giorgio Agamben, centralizado na perspectiva do controle e condução da morte dos outros.
Nesses termos, para Mbembe, na gestão social necropolítica, o Estado se apresenta como protetor para a classe social rica, e como Estado predador para a classe social colonizada, paralisando a visibilidade e o reconhecimento da luta de classe e, inclusive, configurando-se como aquele que naturaliza à indiferença e “deixa morrer”. Segundo, e como o próprio título do texto indica, Safatle apresenta o termo Estado suicidário, um novo e singular horizonte de percepção de “gestão” social no nosso tempo, de reflexão, de análise, de debate, de pesquisa, pavimentado por Paul Virilio, como expressão de superação dos agenciamentos do Estado necropolítico pelos atuais dispositivos daquele que poderia ser nomeado de “estado suicidário”. Se para o primeiro o “deixar morrer” se apresenta de forma visível no capitalismo, ora naturalizado ora questionado, o segundo, o estado suicidário, se manifesta de forma singular, como “um fenômeno de outra natureza, que não se deixa ler completamente em uma lógica necropolítica”.
Então, para Safatle, como age e quais as dinâmicas sociais do estado suicidário? Ele não “gerencia” a morte apenas para grupos ou classe social específica, como opera o Estado necropolítico. Esse tipo de Estado é o “ator contínuo de sua própria catástrofe, o cultivador de sua própria explosão, o organizador de um empuxo da sociedade capitalista para fora de sua própria auto-reprodução”. Nesse ponto, Safatle remonta toda uma reflexão adorniana como suporte para a urgência e emergência de elaborarmos o passado, mesmo que ele seja recente. Trata-se de falar, trazer para os debates a questão do “desejo de catástrofe”, das “fantasias do fim do mundo”, da criação do discurso do inimigo externo. Enfim, falar da “destrutividade como fundamento psicológico…como delírio paranoico”, como singularidade dos padrões de violência deflagrados enquanto “dispositivo de mutação psíquica” do autoritarismo. Mutação psíquica originada na destrutividade da relação consigo e que se estende para a relação que pessoas com personalidades autoritárias estabelecem com o outro e com o mundo. Mutação psíquica que faz opção pela morte. O curioso do texto de Safatle é, entre outras inquietações, a via da contrarrevolução que hoje está notoriamente instalada pelo neoliberalismo através da ascensão de governos de direita e extrema-direita, com seus nefastos representantes e tentativas de desmontes do Estado social.
No entanto, Emir Sader, em seu mais recente texto, O segundo ciclo antineoliberal na América Latina, retoma os processos eleitorais da Argentina, de Alberto Fernández, e Bolívia de Luis Arce, enfatizando que ambos países, assim como Brasil, também foram atravessados pela onda antidemocrática e de judicialização da política, mas conseguiram levar ao poder candidatos do campo da esquerda, das lutas e do desejo de democracia participativa do conjunto da população, pois estaríamos vivenciando no continente, desde a primeira onda antineoliberal registradas nas décadas iniciais do século 21, novos ciclos de governos progressistas, contrários ao projeto do neoliberalismo e sua agenda pautada “em ajustes fiscais, privatizações, corte de recursos públicos e das políticas sociais, alienação da soberania nacional e endividamento externo”, medidas que para os neoliberais são as únicas possíveis, pois elas não alteram o estado das coisas e conservam suas máquinas de produção de desigualdades e mortes em série. Revolucionando esse contexto de “perversão da vontade popular” imposto pelo neoliberalismo, Sader argumenta e visibiliza a inovação dos programas antineoliberais com a ascensão do campo da esquerda na América Latina, que ele denomina como o primeiro ciclo de governos do campo do campo da esquerda, os quais, e por representarem a soberania popular, diminuíram expressivamente a desigualdade e exclusão sociais, a fome e a miséria no nosso continente, demonstrando, num sentido, a enganação do neoliberalismo como única saída para a desenvolvimento e emancipação dos povos.
Noutro sentido, desenvolvendo possíveis e inovadores “processos de integração regional e intercâmbio Sul-Sul, especialmente com a China. Assim, governos antineoliberais conseguiram “isolar, mais do que nunca, a influência norte-americana no continente. Foi um momento muito especial para a América Latina, que projetou os principais líderes da esquerda no mundo: Lula, Evo Morales, Rafael Correa, Pepe Mujica, Hugo Chavez, Nestor e Cristina Kirchner”(https://www.brasil247.com/blog/o-segundo-ciclo-antineoliberal-na-america-latina ). Com isso, enfatizamos aqui que tanto o estado suicidário quanto a via do colonialismo estadunidense precisa ser amplamente inviabilizada. A destrutividade como fundamento psicológico é suicida e, portanto, arrastou e ainda puxa muita gente para o abismo junto com ela. Por sua vez, a centralidade do lucro financeiro do neoliberalismo opera contra a vida, matando gente e o planeta, segundo a segundo, para “ganhar”, extrair mais dinheiro. Desse modo, podemos continuar permitindo o espalhamento das mentiras do “novo normal”, das enganações, da distopia e da “implosão suicidária do corpo social”? Provocadas pelos interesses e autoritarismo do neoliberalismo, com suas “potências sombrias do supereu”, do ego, do egoísmo, do lucro e nada mais?
Essas são as nossas inquietações fundamentais acerca dessa dinâmica de mundo que partilhamos e refletimos com vocês agora. Afinal, só no Brasil, são mais de 156 mil mortes por covid-19, levando em conta os óbitos, os contágios e os infectados não notificados. Como também, o aumento de desemprego, a estimativa de chegada da segunda onda dessa doença e do isolamento total no país e de corte do auxílio emergencial previsto para dezembro próximo. Por isso, segundo Sader, a América Latina, e seus Estados, precisam regulamentar o descontrole dos meios de comunicação. E nós acrescentaríamos, antes que o capitalismo de vigilância, com seu cadastro QR Code de pessoas em situação de rua e com sua Big Techs, nos engulam definitivamente, a exemplo da Matrix (https://www.youtube.com/watch?v=rGARvEcG9Uo https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/mito-caverna-matrix.htm ). Precisamos também realizar uma “reforma tributária socialmente justa, uma política econômica de integração regional e de novas alianças no plano internacional… as eleições de fevereiro no Equador e o desenlace da crise brasileira, que talvez se dê em 2022”.
Além dos nossos enfrentamentos, essas são as tarefas que também precisamos aprender com a pandemia: estancar a destrutividade suicidária da ordenação digital e financeira do neoliberal que tenta se apropriar, aparelhar o Estado social e estufar nossa sociedade, educação e saúde públicas com representantes do capital: terceirização, privatização, corporação midiática, exploração das pessoas e extração dos seus dados, pois só utilizam a tecnologia para alargar e aprofundar ainda mais as desigualdades, incentivar e manipular o consumo e o lucro (https://www.youtube.com/watch?v=FjCpcEp9_ag https://www.youtube.com/watch?v=QJijvPkO3cI ). Assim, precisamos ainda despertar, reconhecer, ver, entender, lutar e desativar essas reformas ideológicas, isto é, esses discursos e práticas de poder do mercado. Fortalecer o funcionamento do Estado social, democrático, de direitos e de programas sociais, defender a sociedade, seus servidores públicos que, fazendo parte da classe trabalhadora brasileira, prestam serviços à população, sobretudo, através do bom uso, benefícios e democratização da tecnologia e novas sociabilidades. Com isso, não repetir equívocos, vacilos e enganos, mobilizar, construir unidade com os movimentos sociais e demais ferramentas contra-hegemônicas de comunicação e distribuição da informação e definir os novos rumos geopolíticos do segundo ciclo dos governos antineoliberais, populares, na nossa América Latina (https://www.viomundo.com.br/politica/depois-de-humilhada-nas-ruas-prefeita-de-vinto-se-elege-senadora-na-bolivia.html https://www.cartacapital.com.br/mundo/eleicoes-na-bolivia-mostram-que-politica-externa-de-bolsonaro-tera-que-ser-revista-diz-professor/ ).
Keyla Ferreira
Muito bom!
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