EntreLAÇadOS

Nota de agradecimento*

Todo dia acordo, achando que estou morto. Condômino de um limbo com a parcela atrasada. Verificando se ainda produzo sombra, se o coração ainda é música. Batendo cartão na mesma dúvida: já é luto ou ainda estamos no páreo. Nunca fui tão íntimo de meu fim – quando será o fim? E uma das primeiras notícias que ouço é que astronautas não querem mais voltar ao planeta.

Em moto contínuo, levanto-me, dirigindo a carcaça obesa pelos quartos de meu jazigo. A casa é uma ‘zona zero’, uma alfândega, uma sala de espera da Polícia Federal pré-Celestial. Não sei mais a que mundo pertenço. Renovo passaportes sagrados em rezas e cânticos. Hoje sou fronteira, hoje sei o que é ser um refugiado. Sinto o gosto do sal marinho que salpica para dentro da minha balsa. Lágrimas náufragas. Já organizei testamentos, distribuindo posses. Posses que me ajudam a estudar meus afetos – posses definem afetos? Xeque-mate constante para identificar os que habitam o meu núcleo vip, lá, a bomba de carne, ensanguentados e espremidos entre as paredes deste músculo em forma de coração. Sigo fazendo testamentos (farei uma live tutorial em breve para quem quiser), estudando doações, partilhas, derramando assim o que virá a ser minha a última boa ação neste mundo. Mas as coisas da casa me parecem tão mortas. Coisas podem morrer? Mortas como cadáver de um tempo velho. Algumas fedem à decomposição – talvez as enterre sob o assoalho. Um apartamento cemitério de objetos. Tem dias que danço mais, tem dias que rezo mais; todos os dias como mais. E sonho tanto. Sonho para rever – às vezes, me despedir – de amigos; e a todes faço a mesma pergunta. “Eu fui um bom amigo para você?”. Alguns me fazem acordar antes de dar uma resposta – é desesperador.

Retomo um dos meus exercícios matinais – recordo. O tempo deve mudar de pele, mas pode-se enterrar o passado? O passado foi feito para ser esquecido ou lembrado? Porque nada me é mais presente. Tenho sido frequentado por muitos de vocês. Se você recebe este texto é em gratidão a sua visita. Você tem tomado chá comigo, amanhecido a meu lado, tem sido considerado como artigo de luxo na estante das saudades. Hoje tem mais saudade que livro na estante. (E quem sabe se você não está em meu mais recente testamento – suspensão dramática). Meu caro, minha cara, estamos mais próximos do que pensamos. Na mesma encruzilhada – típica de toda guerra – entre o extermínio iminente e o desejo de sobreviver para construir algo bem melhor. Vencer as ruínas. Ser maior que petardos e granadas. Costurar as carnes. Estamos mais vizinhos que nunca, atravessados de humanidade e da certeza que ainda há tanto a se fazer um pelo outro. Espero não falhar mais contigo. Espero seu perdão. Espero te abraçar em breve. Porque cheiro faz falta. Perfume faz falta. Batida do coração faz falta. Seu hálito faz falta. Enxugar lágrima faz falta. Você faz falta. Mas a ideia da sua pessoa não me abandona. Obrigado por insistir em mim!

Newton Moreno (Dramaturgo Pernambucano)

* Texto concedido pelo autor para ser publicado no Blog do Espaço de Acolhimento

7 comentários em “EntreLAÇadOS

  1. Vou postar aqui mesmo. Depois, eu posso esquecer. É algo que me tem ocorrido com mais frequência: esquecimentos. Eu talvez penda mais para o psicológico nesse relato, porque sou psicólogo, talvez. Então esqueci de cancelar assinatura do Telecine Play (eu assinei só pra ver Bacurau de graça, e esqueci de cancelar depois), esqueci de pagar internet, água, esqueci datas de aniversários importantes (tipo, que eu lembrava tão bem como a minha… e eu não tenho certeza ainda se lembrei. Lembrei nada…), números de telefones importantes estão parecendo aos poucos incertos, estranhos. Eu estou achando isso bem interessante e agradável. Eu acabei de esquecer o nome de Manuel de Barros, um dos poetas que mais gosto. Há uma lista grande de esquecimentos que pararei por aqui. Minha esposa e filha estão usando com muita frequência um tal de TikTok (acho que é isso mesmo) e isso de certo modo as alegra bastante. Eu tenho estudado o idioma italiano e tenho mexido com música e com argila. E tenho estudado psicologia, coisas do doutorado, principalmente. E tenho feito novas receitas. E tenho dado aulas de inglês às duas moças. Muito interessante experiência tem sido esta, por sinal. Estou mais caridoso, mais bonachão, eu acho. Muito preocupado fico em pegar o vírus, não saio de casa, quase. Raramente eu saio, pra comprar comida. Tem sido uma experiência até pessoalmente interessante. Meus sonhos (sonho de dormindo mesmo, mundo onírico) estão mais longos e ricos e, curiosamente, ‘recordáveis’. Gosto que veio aqui outro dia uma borboleta. Estou há seis anos no Recife e nunca tinha visto isso. Meu gato outro dia comeu um passarinho. Nunca mais tinha visto essa cena, de gato com passarinho na boca. Amanheço no quintal e vem às vezes um beija flor beber água numa garrafinha que coloquei para eles. Veio uma manhã um bem-te-vi enorme, amarelão, lindo. A arte tem mostrado mais o que é, para mim. É, ou ao menos parece ser, uma condição humana. Como a água sabe, ou o cálcio. Sem arte, sem ser artístico, a gente morre, eu acho hoje. Comecei Yoga mas não gostei. Não sei se foi a tutora vaidosa ou a série de posições. Chato, achei (que namasté o quê!). Mas tem gosto pra tudo. A quarentena deixou mais fácil lavar a louça. Até varrer. O Brasil está essa loucura até um pouco assustadora. Evito pensar nos desdobramentos próximos. Espero que a gente resista e lute sempre. Amo muito o Brasil e o povo brasileiro e nordestino, principalmente. Acho que estamos muito doentinhos. Uma pena. Morreram pessoas tão boas, como o Aldir Blanc. O Brennand, uma pediatra amiga de mainha, um rapaz trabalhador (que trabalhava muito) aqui do bairro, aquele ator, Migliaccio, por esses dias. O Moraes, rapaz… Só gente boa, morrendo. Eu acho curioso esse movimento. Bem, espero ter ajudado. Acho que tenho sido um bom confinado. Tenho lidado bem com isso. Eu recomendo a todos, principalmente aos que estão se atrapalhando nesse momento; arte. Arte e churrasco e despreocupação e esquecimentos têm me feito muito bem. O celular nesse contexto atual, para mim, ficou mais fraco. Mas talvez funcione bem para passar um trote inofensivo.
    Se cuidem tod@s. Alegria, ânimo e coragem.

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  2. Que lindeza de texto!! tão profundo e tão adequado aos nossos tempos!! Gratidão pela concessão do maravilhoso texto, Newton Moreno.

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